#17 Magnetizada por loucos
Com Ritinha, a amiga de infância, apenas lanço mão da minha prerrogativa de escritora
Os loucos sempre me atraíram, me seduziram. Ao longo de toda a minha vida desde a infância até hoje, eu sempre fui magnetizada por essas pessoas onde quer que estivéssemos. Que fique claro que não faço qualquer julgamento de loucura baseado em estereótipos sociais ou diagnóstico estrutural psicótico ou nada que possa vir a passar pela cabeça louca de vocês leitores. Lanço mão da minha prerrogativa de escritora aqui, apenas.

Poderíamos começar esse texto pensando sobre os motivos pelos quais mantenho essas pessoas “fora da caixinha” à minha volta - o que poderia até ser de grande utilidade clínica para um estudioso de psicanálise - mas, vamos deixar isso pra minha análise. E mais uma vez deixo pra lá meu lugar de psicanalista, pois hoje aqui cabe ainda menos esse semblante. Tá difícil soltar, vocês estão percebendo, né?!
Enfim, começo a inventariar de cabeça os muito loucos com quem convivi como amigos, funcionários, namorados… e é bastante coisa. Os louquinhos a gente nem conta, aí entram familiares também. Todos se dizendo muito ajustados e fazendo campanha de fake news pra golpista (não aguentei, desculpem).
Quando eu tinha seis anos, a Ritinha (esse não é o nome verdadeiro) se mudou pra minha rua e foi a minha melhor amiga por muitas décadas. Ela era brilhante, inteligente e caótica, as pessoas a amavam ou a odiavam. Lembro de um baú de madeira em que ela guardava suas coisas trancadas com cadeado. Lá ficavam todos os seus pertences: roupas sujas, limpas, os patins, livros, calcinhas, biscoitos, escova de cabelo, tudo junto, embolado. Era assustadoramente fascinante pra mim, aos treze anos, vê-la procurando algo ali. Eu nunca soube o que pensar e dizer e até hoje lembrando me faltam palavras.
Nós éramos seis meninas na rua com idades próximas. Havia a Juju, a Patricia VT (chamada assim pois era a filha do veterinário, mucho loka, mas outro dia conto dela), ambas mais novas que eu, e depois todas as outras, mais velhas: Ritinha, Bia e Elaine. Ritinha e Bia tinham três anos mais e Elaine era ainda mais velha. Elaine brincou pouco tempo conosco e foi traumático pra nós o dia que tocamos a campainha da casa dela pra chamar pra brincar e dona Didi, sua mãe, apareceu na janela avisando que Elaine agora era mocinha e não ia mais brincar dali pra frente. Elaine nunca mais falou conosco na rua, não nos cumprimentava mais e nós, as outras cinco, passamos anos falando e falando desse acontecimento. Talvez, se nos encontrarmos ainda hoje, quarenta anos depois, ainda venhamos a repetir as palavras da dona Didi na janela e o nosso sofrimento naquela manhã.
Ritinha, mais velha e muito sagaz, era geralmente a manager dos empreendimentos infantis. Ela era a chef confeiteira quando fazíamos os bolos de barro de três andares com lama fervente por cima, ela promovia desfiles de moda de Barbies com figurinos autorais nossos, ela era a arquiteta das casinhas de quatro cômodos, com janelas, que construíamos com restos de material das obras da vizinhança. Foi numa dessas que minha mãe ouviu ela praguejar contra meu irmão irritante depois que ele pisou num prego. Quando eu cheguei em casa, minha mãe estava furiosa e dizia com feição sórdida, “o nome de Ritinha está anotado no meu caderninho”. E evocava meu avô, seu pai, dizendo que ele teria feito o mesmo. Eu não entendi nada, mas fiquei apavorada e com raiva do pateta do meu irmão, claro. E minha mãe levou anos pra perdoá-la.
Acho que minha mãe só deixou essa história do prego pra lá quando percebeu que Ritinha era uma desamparada de pai e mãe… e irmãs. Pois ela tinha duas irmãs bem mais velhas, do primeiro casamento da mãe. Todos saíam de casa pra trabalhar e quando a menina chegava da escola, eventualmente, ficava na rua por muitas e muitas horas, sem comida e água. Minha mãe começou a ter dó e levava ela pra casa. Quando anoitecia, alguém chegava e ela podia entrar. Pensando aqui, talvez nossa amizade só tenha se fortalecido mesmo depois que minha mãe a acolheu. Seus pais trabalhavam na polícia e numa briga de casal, houve ameaça com arma. Meus pais foram solicitados a ajudar a mediar a situação grave. Pronto, estávamos todos embrulhados na loucura.
Houve uma fase em que Ritinha tinha mania de enterrar coisas, antes do período do baú. Ela colocava os objetos importantes numa lata, cavava um buraco no quintal e enterrava. O mais legal eram os mapas que ela fazia dos seus tesouros, desenhando códigos, números e enigmas que só compartilhava comigo, caso algo viesse a acontecer com ela. Eu tentei copiar a ideia uma vez e enterrei minha mesada. Não fiz mapa, é claro, pois sabia bem onde estava enterrado meu dinheiro. Posso ter escrito no diário, eu escrevia muito em diários. Deixei o dinheiro lá enterrado um bom tempo numa tentativa de ser previdente. Tem coisa mais neurótica que isso? Quando desenterrei a lata, o dinheiro tinha estragado, estava todo mofado e destruído. Fica a dica, essas coisas só dão certo se você for louco mesmo.
Quando eu fui morar em São Paulo aos quinze-dezesseis anos pra fazer terceiro ano, Ritinha ficou doente e recebeu um diagnóstico psiquiátrico. Eu nunca soube detalhadamente o que se passou, mas me senti culpada. Penso que ficar longe de mim tenha sido um golpe pra ela, fantasia minha. Nessa época ela já fazia faculdade de medicina. Fiquei fora um ano apenas e quando retornei ela passou a ligar todos os dias na hora do almoço. Ficava por uma hora - não é força de expressão - no telefone comigo, sem falta. Essa exigência e esse amor demandante foi se tornando complicado pra mim. No meu casamento (o primeiro), ela já era casada e morava em outra cidade com o marido que também era meu amigo. Na sua viagem para Vitória sofreram um acidente e ele, principalmente, se machucou muito. Fui visitá-los no hospital no dia do meu casamento e chorei e sofri e me martirizei, de novo… e se eles tivessem morrido por minha causa? Na cerimônia do casamento, ela estava lá. Não conseguiu entrar na igreja como a madrinha que era, mas estava sentada no banco, me fazendo chorar de emoção… e culpa. É o amor.
Quando Ritinha engravidou ficou pior e depois que teve sua filha piorou ainda mais, fazia coisas que comprometiam o bem-estar da menina. E o marido acabou se separando. Uma separação complicada, cheia de atritos e eu acabava sendo colocada no meio. Ela levava pedaços de unha suja da criança no potinho de margarina pro juiz avaliar como o pai descuidava da sua higiene. Eu não podia ficar em seu favor e não conseguia me posicionar contra ela. Ela sentia que eu não era mais sua amiga.
Nesse momento, estou lendo pela segunda vez - agora com meu grupo de estudos de clássicos - Dom Quixote, de Cervantes. Foi esse livro talvez que tenha me suscitado à loucura, falando semanalmente sobre a paixão lunática e heroica de Dom Quixote e o bom senso leal e nobre e Sancho Pança. Como material de apoio, topei com um texto de Nabokov sobre o romance, Lições sobre Dom Quixote*, em que o crítico aponta que enfatizar o contraste entre Dom Quixote e Sancho Pança é simplista e medíocre. Nabokov defende que no avançar do romance a dupla passa a intercambiar sonhos e sandices. E que, inclusive, na segunda parte, “enquanto o ânimo de Sancho se eleva da realidade para a ilusão, o de Dom Quixote decai da ilusão para a realidade.”
Nabokov encerra seu capítulo dizendo que os dois heróis se fundem em um, se sobrepõem formando uma unidade que devemos aceitar. Aqui, leio e escrevo, dou uma risadinha de satisfação por conseguir desvelar algo de mim e, simultaneamente, estremeço de medo. Então, meu apetite pela ilusão de Ritinha e de tantos outros com quem convivi diz da ânsia de reconhecer minha própria loucura? O quanto reservo hoje em mim de Sancho e quanto de Quixote? E encerro melancólica associando tudo isso ao apelido que Sancho Pança deu ao nosso nobre protagonista: Cavaleiro da Triste Figura.
*NABOKOV, Vladimir. Dois retratos: Dom Quixote e Sancho Pança. In: ______. Lições sobre Dom Quixote. São Paulo: Fósforo, 2023. p. 38-53.
Encare esse delícia, se ainda não o leu: Dom Quixote é maravilhoso. Parece assustador pelo tamanho e porque foi escrito em 1605, mas é fácil e divertido. A Antofágica lançou uma edição grandona ilustrada que é só prazer: repleta de ilustrações, tradução gostosa e diagramação agradável, do jeito que a gente gosta. É bem cara, mas se puder adquirir, vale a pena.
Foi em janeiro que assisti A garota da agulha, mas esse filme não sai da minha cabeça e creio que não dei essa dica aqui. Assista, tá no Prime.
Estou vendo a segunda temporada de Ruptura na Apple TV+, mas ainda não me convenceu. Sensação de estar fazendo esforço pra continuar. Será que vou sentir isso até quando?
Já a terceira temporada de The White Lotus, que tá na Max, te absorve pro universo nos primeiros dois minutos. Esse eu estou vendo junto com Caio. Vamos dando notícias por aqui.
Estou com muitos livros também pela metade. Que chegue o carnaval pra gente curtir folia de livros, séries e filmes. E dá-lhe Ainda estou aqui no Oscar!
Sua escrita avança a cada newsletter. O que começou bem está mais afiado, desenvolto e com um ritmo mais ajustado. É bonito, pra mim, acompanhar esse florescer e esse desenrolar de talento. Um talento, aliás, que você sempre teve, o da escrita, mas que por força das circunstâncias da vida, sobretudo as profissionais, estava "arquivado" em algum lugar. Tudo corre belamente, como se as palavras e frases se juntassem em um grande rio que desagua no mar, este mar sendo o texto em seu todo. Voa, garotinha, voa longe, tudo aquilo a que você se dedica tende a desabrochar e florir. Sorte minha poder acompanhar tudo de tão perto. Está muito bacana e só tende a crescer e crescer. Sou teu fã, teu admirador (quiçá o número um).
Adorei! Tive uma amiga "Ritinha", chamava-se Emilia. Por muito pouco não acabou com minhas fantasias sobre o amor e suas consequências. Mas não deu tempo. Por conta de suas "lições", corri atrás da verdade e acabei aprendendo tudo muito cedo. Foi bom (e não foi também). Mas deixa pra lá!