#09 Quer desgraça no Natal, toma
Toquei o limite do mundo dos mortos e agora sou uma boneca quebrada
A partir daquele dia eu me transformei, toquei o limite do outro mundo, o mundo dos mortos. Voltei, mas me tornei uma boneca quebrada, funcional, dá pra brincar, mas para sempre remendada.

É estranho como o dia que marca um antes e depois na vida da gente é um dia comum como outro qualquer. Caio, por exemplo, quando tem muita saudade da mãe a ponto de falar sobre aquele dia em que ela foi fazer uma cirurgia aparentemente simples e nunca mais voltou pra casa, lembra como aquela despedida, de manhã, foi trivial.
Aqui em casa, toda as vezes que eu, Catarina e Isadora montamos juntas a árvore de Natal, vem a lembrança da noite do ano de 2021, em que já estávamos no momento apoteótico de ligar o pisca-pisca na tomada, admirar a árvore pronta e esperar o Papai Noel, quando meu celular tocou pra informar que meu tio-padrinho tinha infartado ao volante, com o carro trancado por dentro. O socorro demorou? Teria feito diferença? Até aquele instante, eu estava construindo com “minhas meninas” mais uma memória alegre, singela: a gente montando a árvore de Natal que ocupa metade de sala, elas reclamando que eu só fico olhando e eu realmente apenas contemplando elas se tornando mulheres tão melhores que eu. Os supersticiosos me perdoem: diante de tais incidentes, não creio que haja prenúncio divino. Num instante seu chão se abre, tudo muda e se dá o tal “encontro com o real”.
Eu adoro o Natal. No entanto, ao escrever essa frase e lê-la em voz alta, me vejo obrigada a pensar se realmente gosto ainda ou se gosto mesmo ou se apenas afirmo por hábito, se repito e repito. Os Natais foram, sim, maravilhosos na minha infância. Era a época de férias na praia, na roça, com bicicleta, rio e presentes. Depois, na adolescência, era precioso, as descobertas com as primas, namorados, liberdade, os amigos.
As comidas natalinas, adoro tudo até hoje: sim para as passas no arroz, na farofa, sim para os fios de ovos no pernil e principalmente, sim para as cerejas de xuxu em tudo. Vejam só que sou uma romântica gulosa e se houver um sabor que me evoque um momento feliz, abro mão de qualquer restrição - ou pseudo elegância - imediatamente. Memórias culinárias são amor, aprendi com minha avó.
Entretanto, nos últimos anos, os Natais parecem ter perdido sua magia, que dó. Terá sido pelos acontecimentos transformadores ocorridos nessa data nos anos passados? Terá sido porque o Natal esfrega na nossa cara que empobrecemos? Terá sido porque a família cresceu - com tios, primos, sobrinhos, agregados, etc - e se tensionou muito? Ou terei sido eu, que estou com mais dificuldade de suportar a acidez, a amargura e a aridez de nós, mulheres dessa família materna?
Foi no dia de Natal de 2019 que me tornei uma boneca quebrada. Estávamos no sítio dos meus pais, numa cidade cerca de uma hora da capital onde moramos. A casa estava cheia, acordei cedo, coloquei biquíni pra passar o dia na piscina. O sol estava bonito, a mesa posta, as crianças eufóricas, a música na caixa de som, a cozinha se agitando e os bichos por ali: o cão preguiçoso à espera de um carinho ou de que um pedaço de comida escapulisse pra sua boca, as galinhas ciscando os farelos que se safavam do cachorro, os peixes no laguinho construindo o cenário bucólico campestre perfeito pra ler um bom livro. Eu podia ter seguido lendo o meu livro, teria sido um dia de Natal comum, mas aceitei a oferta de andar de cavalo.
Escolher aquele garanhão pra pessoas inexperientes como nós era um erro, mas acho que meu pai queria que seus filhos e netos tirassem fotos com seus animais mais bonitos. Nunca perguntei a ele porque escolheu aquele bicho pra nós, pois sei que respondeu a essa pergunta, culpado, dezenas de vezes. Não posso me eximir da minha responsabilidade, cometi uma sequência de erros: além de não ter familiaridade com animais, não sou uma amazona experiente, estava vestida inadequadamente pra andar a cavalo (apenas uma saidinha de praia leve sobre o biquíni). O pior de todos os erros é que percebi que, após algumas voltas, o cavalo passou a se mostrar arredio e decidi que daria a última volta pra entender o que eu estava fazendo de errado e, definitivamente, assumir o controle sobre o animal. Fui destemida, algo que pode ser admirável eventualmente. Tentei controlar o outro e fui tola ao ignorar que o cavalo também tem suas vontades. Infelizmente, não posso dizer que prepotência não está no cardápio das minhas deformidades. Mas, talvez achasse que meu pai garantiria minha segurança ou talvez eu quisesse mostrar pra ele a cavaleira que eu era, coisa que nunca fui e que meu irmão sempre foi. A propósito, meu irmão é veterinário e trabalha exatamente com equinos.
Aconteceu que o cavalo fugiu do limite da cerca estabelecida e voou em disparada pela estrada, comigo sobre ele. Precisava avisar que as coisas tinham saído do meu controle e gritei por socorro. Talvez pensassem que eu estava indo passear a galope. Dei apenas um grito: socorro! Quando dizem que os milésimos de segundos se transformam em minutos em momentos como esse, é assim mesmo. A partir do instante em que percebi que estava em perigo, visei sofrer o menor dano possível e me lembro de calcular várias opções. Ainda recordo de avaliar a possibilidade de acalmar o bicho e mirar seu olho esquerdo, e vê-lo cheio de veias vermelhas, injetado de sangue. Ele estava nervoso, talvez mais do que eu, seria impossível pará-lo. Ele ganhava cada vez mais velocidade, corria e bufava. Só ia parar quando topasse com um grande obstáculo, eu seria lançada pra frente e bateria com a cabeça, supus. Precisava sair dali.
Quando gritei por socorro, meu pai entrou na caminhonete e veio seguindo o cavalo desgovernado e o peão do sítio, coitado, correu atrás do cavalo a pé mesmo. Era o cavalo comigo na frente, cada vez mais acelerado, pois creio que quanto mais o cavalo corria, mais meu corpo solto sobre ele ordenava que ele acelerasse, batendo com as pernas e pés no estribo; o funcionário vinha correndo atrás desesperado, gritando as palavras possíveis que pudesse acalmar o garanhão. Soube depois que só pensava que seria demitido, coisa que obviamente não aconteceu. Depois, vinha a caminhonete com meu pai, que levou mais tempo até ligar o carro, manobrar, etc. Não poderia deixar passar o quinto aniversário desse acontecimento digno de 007 sem compartilhá-lo com vocês.
Eu juro que pensei que saltaria do cavalo e cairia de pé, sem danos. Mas definitivamente não fui como o cachorro caramelo desembarcando do metrô. Rolei muitos metros, bati a cabeça e caí desmaiada numa vala. Meu pai foi o primeiro a chegar e, mesmo sabendo que não devia ter mexido no meu corpo, não suportou me ver ali “na vala”, me pegou no colo e levou pra casa. Ter caído “na vala” foi razão de muita piada depois que tudo passou e até agora acho engraçado as coisas terem acontecido assim.
Chamaram a ambulância, me imobilizaram adequadamente, minha visão ficou verde e depois passei a não ver mais. Uns minutos depois, voltou. Trinta minutos se passaram, a ambulância chegou, me transportaram pro hospital da cidade, não sei se foi mais perigoso saltar do cavalo ou andar na ambulância. Só perdi a lucidez naquele desmaio, durou menos de um minuto, creio. Depois do primeiro atendimento na cidade, fomos pro hospital da capital, tive muitos hematomas na cabeça, mas todos na área externa ao osso, nada no cérebro. Muitos hematomas no corpo, quebrei o braço. Tive uma capsulite adesiva no ano seguinte, o ano da pandemia, devido a esse acidente.
Mas depois de ter sido socorrida, atendida e medicada durante todo o dia de Natal, voltamos pro sítio e participei da ceia com minha família. Eu parecia um panda, o rosto meio roxo (foi ficando bem pior com os dias), pescoço imobilizado, braço fraturado, pernas raladas, mas ali com minha família. Boneca quebrada, mas ali. Será que o título dessa crônica deveria mesmo ser “desgraça de Natal” ou mais justo seria “graça de Natal”?
Trilha sonora recomendada pra ler esse texto: Sujeito de sorte, de Belchior.
Porque não vou parar de recomendar materiais sobre o período da ditadura: Torre das Donzelas, um documentário de 2019, dirigido por Suzanna Lira; e o romance concluído essa semana, O corpo interminável, de Claudia Lage.
Tô começando a assistir a Cem anos de solidão, a série da Netflix adaptada do romance maravilhoso de Gabriel García Márquez. Vi apenas o primeiro episódio até agora, pois a estreia foi na última quarta, dia 11, e estou apaixonadamente impressionada. Sou suspeita, pois li Cem anos de solidão duas vezes e a mágica de Gabo me deixa inebriada. A adaptação terá duas temporadas, cada uma com oito episódios.
Tatiany Leite entrevista Paulo Dutra no podcast Quarta capa. O episódio se chama: O que a negritude e o embranquecimento de Machado de Assis dizem sobre como o Brasil lida com o racismo? Paulo Dutra é um acadêmico interessante e seu trabalho lança uma nova luz sobre um tema que precisamos falar. Pra quem ama literatura, então, é fundamental.
Mais um texto maravilhoso de ler! E a fotografia foi a cereja do bolo. Rsrs
Parabéns mais uma vez.
Vi de perto tudo isso, e como foi rápido. Vi também sua coragem e sua calma diante da dor. Te amo.